Ela não fala nem anda e mexe só os olhos, o suficiente para expressar tristeza quando o pai se vai

O rosto fica vermelho. Nos olhos, uma gota de lágrima começa a escorrer. A respiração vai cessando e o aparelho de ventilação mecânica começa a apitar, avisando que alguma coisa está errada.

Essa cena acontece toda vez que o pai da jovem Alice de Maria, de 17 anos, deixa o quarto em que ela está internada, o 357 do Hospital Samaritano, na Zona Oeste de São Paulo.

Alice tem distrofia muscular, uma doença progressiva que impede o desenvolvimento dos músculos, e está internada desde os 3 meses de vida na unidade. Ela não fala nem se move. Apenas mexe os olhos para se comunicar e expressar sentimentos.

O pai, o mecânico de automóveis Márcio de Maria, 52, visita a filha três vezes por semana. Até ela completar 15 anos, os encontros eram diários.

“Durante 15 anos fechei minha oficina todo dia às 17h e me dirigi ao hospital para ficar algumas horas com a Alice”, contou. “Agora vou três vezes por semana. Assisto televisão com ela, brinco, beijo e abraço, mas o difícil é na hora de ir embora.”

Como Alice agora já é uma “mocinha”, nas palavras do pai, Márcio costuma levar para ela presentinhos como pulseiras e colares. “Ela é muito vaidosa, adora se enfeitar”, disse.

Márcio é conhecido no Samaritano como o pai e mãe de Alice. Isso porque a mãe biológica da jovem mora em Goiânia e só a visita duas vezes por ano, no aniversário e no Natal.

O casal se separou logo depois que Alice nasceu, com o problema de saúde. “Ela não se mexia e com três meses descobrimos a doença”, contou o mecânico. “Desde então está internada. A sorte é que pagávamos um plano de saúde que custeia toda a sua internação.”

Quando não está com o pai, com quem costuma assistir a desenhos da Disney e corridas de Fórmula 1 (paixão de Márcio), Alice tem uma rotina de fisioterapia, fonoaudiologia e pequenos passeios pelo hospital, numa cadeira adaptada.

“Todos já a conhecem”, disse Márcio. “As enfermeiras colocam tiara, enfeitam para passear pelo hospital.”

Pela longa convivência, os profissionais de saúde do hospital conhecem também os sinais de comunicação de Alice. “Quando ela está emburrada ou triste usa o recurso de segurar a respiração para fazer apitar o aparelho de ventilação mecânica”, explicou o pai. “O problema é se um dia ela não estiver respirando e todos acharem que só está protestando.”

Nesses 17 anos de vida de Alice, Márcio nunca se ausentou de São Paulo. “A última vez que fui à praia foi em 1997”, disse. “Não tenho coragem de ficar longe da minha filha.”

O mecânico disse que a filha contrariou todos os prognósticos médicos: “Diziam que ela teria três meses de vida e ela já tem 17 anos. Que não sentia nada, e ela chora quando vou embora. Que não sentia gosto, e ela adora chocolate”.

Márcio costuma dizer que as reações da filha o ajudam a não desanimar: “Às vezes vejo gente no elevador do hospital reclamando por estar ali há três dias. Eu estou há 17 anos e não desanimei.”

Lei obriga plano de saúde a pagar por longa internação

Desde 1999, quando uma lei federal regulamentou os planos de saúde no Brasil, as longas internações passaram a ser garantidas aos segurados. Em seu artigo 12, o texto diz que em cobertura de internações hospitalares em centro de terapia intensiva, ou similar, é “vedada a limitação de prazo, valor máximo e quantidade, a critério do médico”.

Segundo a ANS (Agência Nacional de Saúde), com essa regra ficou claro que não há limite para a internação hospitalar, mesmo em casos de UTI. “Quem determina o tempo de internação do paciente é o médico responsável, e não a operadora de plano de saúde”, disse a ANS.  “O paciente deve permanecer internado durante o tempo em que o médico achar necessário, mesmo que o tratamento seja contínuo e ininterrupto ao longo dos anos.”

Segundo a ANS, é importante frisar ainda que, se o médico indicar a internação domiciliar em substituição à hospitalar, as operadoras são obrigadas a arcar com a cobertura. “Em todos os casos, a garantia de atendimento é certa aos beneficiários que possuam planos de saúde contratados a partir de 1999.”

Já o advogado José Cláudio Ribeiro Oliveira, presidente da Comissão de Planos de Saúde da OAB–SP, disse que, mesmo em contratos assinados antes da lei, a Justiça tem dado ganho de causa aos usuários dos planos.

“Antes da lei alguns contratos estabeleciam prazo máximo de internação, que variavam de 60 a 90 dias”, disse. “Mas o Judiciário tem sido unânime em considerar essas cláusulas contratuais abusivas e dar ganho de causa aos usuários dos planos de saúde.”

O DIÁRIO procurou o Hospital Samaritano, onde está internada há 17 anos Alice de Maria, mas ele não se manifestou.

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