Sem poder arcar com as mensalidades, 2,6 milhões de brasileiros tiveram de abrir mão de convênios médicos nos últimos dois anos e voltaram a depender do sistema oficial. Com a crise fiscal, porém, o atendimento na rede pública piorou

A saúde no Brasil está à beira do colapso. Diante da crise fiscal em municípios, nos estados e na União, os investimentos estão caindo vertiginosamente em uma área de importância vital para a sociedade. Faltam recursos para manter um padrão mínimo de qualidade no atendimento médico-hospitalar da rede pública. No âmbito privado, o drama também assola milhões de famílias. Em dois anos, quase 2,6 milhões de pessoas perderam o convênio médico em decorrência do aumento dos preços, da alta do desemprego ou do endividamento familiar. Isso aumentou ainda mais a demanda pela saúde pública, fechando um ciclo que impõe sérios desafios aos gestores governamentais e ao setor de saúde suplementar.

Até 2015, a aposentada Eurenice Alves, 56 anos, pagava R$ 600 por um plano de saúde individual. O convênio mal atendia às necessidades dela, mas era “melhor do que nada”. “Havia clínicas e hospitais que se negavam a me atender. Já precisei pagar por exame, por radiografia e até por injeção. Cancelei o plano porque não tinha mais condições financeiras de continuar pagando”, conta. Na época, a mensalidade subiria para quase R$ 900. Um aumento de 50%, bem acima da inflação de 6,4% acumulada em 2014 pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).

O caso de Eurenice é um exemplo, entre tantos outros, de pessoas que ficaram sem plano de saúde no Brasil nos últimos dois anos. Em 2015, cerca de 1,18 milhão de brasileiros deixaram de contar com assistência médica privada, segundo dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). No ano passado, foram mais 1,37 milhão, o que dá cerca de 2,6 milhões de conveniados a menos em dois anos.

Sem o plano privado, muitos brasileiros passaram a depender da saúde pública justamente em um momento de desequilíbrio fiscal nas três esferas de governo, o que piorou muito o atendimento à população. “A saúde pública está péssima. Faltam remédios e médicos nos hospitais. Na última segunda-feira, fui a um posto de saúde marcar consultas com um nutricionista, para minha filha, e um ortopedista para mim. Passei mal e caí. Não tinha uma alma viva para me ajudar. Fui socorrida por uma cadeirante que estava ao meu lado”, relata Eurenice.

Motivos não faltam para a aposentada precisar de atendimento. “Tenho lúpus, problema cardíaco, fratura na coluna e um tumor no lado esquerdo da cabeça”, afirma. Endividada e lutando para sobreviver, ela teme perder as forças e sucumbir à inoperância do sistema de saúde no Brasil. “A saúde privada é cara, e a pública está uma calamidade. Se eu depender do serviço público, vou morrer na porta do hospital ou largada em um leito”, lamenta.

Boa parte da situação pode ser atribuída à crise econômica. O desequilíbrio fiscal levou o governo a deixar de aplicar R$ 15,1 bilhões na área da saúde em 2015, segundo levantamento do Conselho Federal de Medicina (CFM). Da dotação orçamentária de R$ 121,1 bilhões, apenas R$ 106 bilhões foram efetivamente gastos. E o total desembolsado recuou 0,5% em relação a 2014, a primeira queda em 10 anos.

O número de habitantes, no entanto, continuou crescendo no país. Em 2015, a população residente estimada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) era de 204,86 milhões, quantidade 0,8% maior que a do ano anterior. E não são apenas os gastos correntes com a saúde pública que recuam. Os investimentos também. Em 2015, R$ 6,3 bilhões deixaram de ser investidos em obras e equipamentos, de acordo com o CFM, uma queda de 11,5%.

Ajustes

Na saúde suplementar, a escalada do desemprego foi o que mais expulsou as pessoas do sistema. Dos cerca de 2,6 milhões que ficaram sem convênio médico em 2015 e 2016, 1,7 milhão (66%) tinha planos empresariais, ou seja, atrelados ao emprego. Trabalhadores demitidos têm direito de manter o benefício por seis meses a dois anos, mas precisam assumir o custo integral do serviço, o que pode pesar no orçamento doméstico e tornar inviável a continuidade do atendimento.

Já prevendo a possibilidade de perder o emprego que lhe garantia R$ 4 mil por mês, a aposentada Ana Maria Lobo, 53 anos, trocou o plano que tinha por outro mais simples. E a demissão de fato ocorreu, em dezembro passado. Apesar de custar menos que o anterior, o novo convênio absorve R$ 1,2 mil, ou 43% da aposentadoria de Ana Maria. E não oferece as mesmas condições de atendimento.

“Tínhamos um plano que previa internação em quarto individual e passamos a outro com quarto coletivo. E a rede de hospitais credenciados diminuiu”, conta Ana Maria, que, mensalmente, ainda desembolsa, no mínimo, R$ 400 com medicamentos para ela, os dois filhos e o marido, Paulo Alexandre, 51 anos. “Não podemos reclamar. Num hospital privado, pode demorar, mas seremos atendidos. Estamos fazendo o possível para não depender da saúde pública.”

A crise também atingiu em cheio Thaysa Alves, 24, levando-a a cancelar o plano de saúde. Desempregada, ela não conseguia renda suficiente com o trabalho autônomo de cabeleireira para pagar a mensalidade de R$ 398. Com o ganho de R$ 1,1 mil do marido voltado para despesas básicas, como alimentação, cabia à mãe dela custear o convênio. No entanto, com o aperto no orçamento familiar, ela não viu outra opção a não ser cortar o serviço. “Ainda precisava dele para fazer um acompanhamento médico de uma operação bariátrica que realizei no ano passado. Mas não tinha mais condição de continuar onerando a família”, diz Thaysa, resignada.